“O ESTRANGEIRO” de Albert Camus
“O estrangeiro”, obra de Albert Camus, conta a estória de um narrador personagem, Mersault, um argelino dominado por um vazio que trabalha num escritório em Paris e, em decorrência de circunstâncias absurdas comete um assassinato e, desse modo, julgado pelo mesmo. A Narrativa começa com o recebimento de um telegrama comunicando o falecimento de sua mãe, que seria enterrada no dia seguinte .A partir daí, pode-se considerar o primeiro embate do leitor ao perceber a carência de sensibilidade do personagem diante do luto
“Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei. Recebi um telegrama do asilo: "Mãe morta. Enterro amanhã. Sentimos pêsames." Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem”.
Ele viaja então ao asilo onde ela morava e comparece à cerimônia fúnebre, sem, no entanto, expressar quaisquer emoções. Na volta à sua casa, mais uma vez, remete ao leitor a sensação de que o mesmo mergulha num mundo dominado pelo vazio interior, que o priva de sentimentos:
“Pensei que passara mais um domingo, que mamãe agora já estava enterrada, que ia retomar o trabalho, e que, afinal, nada mudara”.
Reencontra uma antiga amiga, Marie, da qual inicia um namoro, mas ela apenas lhe desperta desejo. Ele é movido somente pelas experiências sensoriais (o cortejo fúnebre, nadar na praia, o sexo com Marie e, logo depois, o assassinato por causa do calor do Sol.)
“Desejei-a intensamente porque usava um belo vestido de listras vermelhas e brancas e sandálias de couro.Adivinhavam-se seus seios firmes e o queimado do sol lhe dava um aspecto de flor”.
O estória prossegue, documentando os acontecimentos seguintes na vida de Meursault que, em seu “tanto faz”, começa uma amizade com um dos seus vizinhos, Raymond Sintes, que se dizia comerciante, no entanto, ganhava a vida em negócios predominantemente amorosos, tais como exploração sexual (proxeneta). Ele chega ajudar Raymond escrevendo um carta que atraísse uma de suas amantes árabes para casa de seu amigo, de modo que o mesmo pudesse vingar-se de uma suposta “traição”. Alguns dias depois, sem grandes remorsos, escuta os gritos de uma mulher sendo agredida no apartamento de Raymond e em nada faz, apenas testemunha a favor de Raymond, seu amigo. No escritório é surpreendido com o convocação do patrão que lhe fala do surgimento de um novo projeto onde lhe daria a oportunidade de morar em Paris e viajar durante parte do ano e o patrão recebe como resposta um decepcionante “tanto faz”, esse seu modo de ser distituído de objetivo é o que torna inquietante para o leitor. Um convite lhe foi feito, passar o domingo numa casa de praia que tinha perto de Argel e ele aceita. Na praia, num intenso calor, Raymond, Meursault e Masson-amigo de Raymond-se confrontam com o irmão da mulher ("o árabe") e mais dois amigos árabes. Raymond sai ferido depois de uma briga com facas. Mais tarde, Meursault volta à praia, encontra um dos árabes e, num delírio induzido pelo calor e pela forte luz do sol, atira uma vez no árabe causando sua morte e depois dá mais quatro tiros no corpo já morto.
Meursault é posto em julgamento por homicídio. Durante o julgamento a acusação concentra-se no fato dele não conseguir ou não ter vontade de chorar no funeral da sua mãe e em repetidas vezes lhe é perguntado se amava a mesma. O homicídio do árabe fica em dimensão reduzida diante do fato de Meursault ser ou não capaz de sentir remorsos; então, se é argumento que, se Meursault é incapaz de sentir remorsos, deve ser considerado um perigoso homem e consequentemente executado para prevenir que repita os seus crimes, tornando-o, também, num exemplo. É surpreendente como Meursault é indiferente enquanto ao seu julgamento, sem ao menos se preocupar com a escolha de um advogado, acha mais cômodo a justiça encarregar-se desse pormenores. É nesse modo de falar descomprometido com sua vida e a forma despersonalizada de lidar com essa nova situação que expressam esse modo de ser cotidiano de um Dasein, “decadente” e “inautêntico”. No dia
Os primeiros sinais que revelam o estruturar-se “ser-no-mundo” surge no momento em que se indaga sobre a impessoalidade cotidiana “quem é no mundo” fazendo um questionamento com o guarda sobre a liberdade. Aprendeu a recordar o que já havia vivido e no julgamento compreendera pela primeira vez que era “culpado” pela morte da mãe. Esse sentimento de culpa e angústia, ainda se escondia por trás de uma muralha gélida e sentimentos desolados:
“Assaltava –me as lembranças de uma vida que já não me pertencia, mas onde encontrara as mais pobres e as mais tenazes das minhas alegrias: cheiros de verão, o bairro que eu amava, um certo céu de entardecer, o riso e os vestidos de Marie. Tudo quanto eu fazia de inútil neste lugar subiu-me , então, à garganta e só tive pressa: acabar com isto e voltar à minha cela, para dormir”
Quando o romance chega ao final, Meursault encontra o capelão da prisão e fica irritado com sua insistência para que ele se volte a Deus. A história chega ao fim com Meursault reconhecendo a indiferença do universo em relação à humanidade.
“ Vivera de uma certa maneira e poderia ter vivido de outra. Fizera isto e não fizera aquilo. Não fizera determinada coisa, ao passo que fizera esta outra. E depois? Era como se durasse todo o tempo tivesse esperado por este minuto e por essa madrugada em que seria justificado. Mada, nada tinha importância e eu sabia bem o por quê. Tamb´me ele sabia o por quê. Do fundo do meu futuro, durante toda essa vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro escuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me havia porposto nos anos, não mais reais, eu eu vivia”.
E pela primeira vez, começou a pensar e perceber que vivia de forma inautêntica diante da impropriedade de suas experiências. E apenas diante das recordações, percebe que sua indiferença ao mundo foi uma escolha, uma possibilidade. Meurseault , enfim, se desvela para um novo modo de ser no mundo, ocorre um abertura de sentido, uma compreensão carregada de afeto, daquilo que não poderá mais viver. Anuncia-se o “mundo” e a angústia surge como “disposição compreensiva” estando agora aberto para si mesmo, para seu ser-no-mundo e tudo aquilo que lhe parecia simplesmente dado, agora lhe é revelado:
“Como se essa grande cólera tivesse lavado de mim o mal, esvaziado de esperança, diante dessa noite carregada de signos e estrelas, eu me abria pela primeira vez è terna indiferença do mundo. Ao percebê-la tão parecida a mim mesmo, tão fraternal, enfim, eu senti que havia sido feliz e que eu era feliz mais uma vez. Para que tudo fosse consumado, para que eu me sentisse menos só, restava-me apenas desejar que houvesse muitos expectadores no dia de minha execução e que eles me recebessem com gritos de ódio”.
Nesse momento Meurseult não tenta mais encobrir e fugir da angústia da morte. Ele elabora momentos de sua vida, do qual o fazem compreender o sentido da morte. Pensa na mãe e a compreende por arranjar um “noivo” ao fim de uma vida e o sentido de sentir-se liberada e pronta a reviver tudo, o sentido de ser para uma possibilidade, que nem foge do “ser-para-a-morte” nem encobre. E, antecipando essa experiencia de morte que ele consegue se desfazer dos nós que o impossibilitavam de “ser-para-a-morte”, o impossibilitava de se desvelar enquanto modo próprio de “ser-no-mundo” e, apenas assim, desvencilhando-se do impessoal.
Encontra sua singularidade ao responder o apelo da consciencia, tendo a angústia como disposição compreensiva que convida ao chamamento do “poder-ser-mais-próprio”. Essa escuta do clamor da consciência e compreensão do seu ser-para-a-morte que abriu novo sentido na experiência de finitude, modificando o seu cenário existencial.
A DASEINANALYSE
A apatia de Mersault serve de referência na sua presença todos os nossos ritos, objetivos, preocupações e sentimentalismos que parecem desnecessários, como tentativa de reflexão acerca de nossas angústias. Num momento ele chega a falar:
“compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar. De certo modo, isto era uma vantagem”.
E o efeito disso torna-se ainda mais devastador quando percebemos que o personagem leva uma vida simples e normal, sem qualquer distúrbio psíquico-social. Porém isso nos remete que, a angústia existencial vivida por Meurseault é uma manifestação da angústia ôntica, da qual todos nós estamos inseridos. Infelizmente Meurseault foi vítima de uma sociedade que o julgou por acontecimentos descritos e classificados como “impróprios” perante seus valores. E foi nessa teoria de causa e efeito e a necessidade de uma explicação bem formulada e aceita, é que deixam uma incerteza da natureza das causas. Olhando por esse prisma, não se compreendia a natureza do assassinato e por isso foi preciso formular uma teoria do caso. É claro que é inadmissível o assassinato de alguém, mas julgá-lo sem verificar o que está por detrás do fenômeno é o mais correto? É inaceitável matar por causa do Sol, mas ele confessou isto e riram dele.É inaceitável não chorar em pleno luto.Diante desses valores acabou por ser acusado não de ter morto um homem, mas de não ter chorado no funeral da mãe. O fato é que, culpado ou não, Meurseault foi julgado pelos questionamentos e valores morais do mundo e não pelo assassinato do árabe. Ele destruiu, subverteu aquilo de mais valioso para o homem perante a sociedade, que são as estruturas sociais- instituições, leis, religiões, ideologias- ou seja, não se redimiu diante de um capelão, não acreditava em Deus, era um “anti-cristo” e o pior, um misantropo. Era um estranho, estrangeiro do mundo e, também, de si próprio, visto que, conforma-se com tudo, adapta-se às condições impostas pelas engrenagens do tempo e só aproveitava o que era bom quando lhe aparecia como algo dado. O resto, deixava acontecer. Para ele, o prazer já basta. Deus, casamentos, funerais e julgamentos são meras invenções formais que distanciam o homem da crueza dos fatos. O vazio de sentimentos, crenças e ambições de Meurseault, aos olhos da sociedade, são suficientes para lhe transformar num estrangeiro no lugar em que vive e numa visão existencial, estrangeiro dele mesmo.
Sabendo-se que somos seres de angústia e que cada angústia humana tem uma razão “de que” e “pelo que” tem “medo” e se teme. Qual a essência da Angústia de Meurseault? Como disse acima, Meurseault era evasivo, não dava grande importância a nada: e a palavra “tanto faz” predominava em praticamente todo curso do livro. Não se sabe pelo que se interessava, apenas pelo que não se interessava, deixava uma grande sensação de vazio, tédio e completa insensatez da vida. O calor lhe atormentava a consciência de uma forma tal que, se não fosse pela ardência das temperaturas nunca teria dado o primeiro tiro. Mas nem deste disparo se arrependeu e foi incapaz de sentir remorsos. A sua vida é levada, como uma caixa vazia é levada pelas correntezas do rio. Porém, essa mesma correnteza, leva tudo e a todos para o mesmo lugar, o mar. Não adiantou esconder a angústia sobre os sentimentos desolados, visto que, diante do obstáculo que lhe surgiu, a morte, eclodiu o reconhecimento da perda do todo e, consequentemente, o reconhecimento do desencadear da extrema angústia e sentimento de culpa. Sua angústia eclodiu, o medo surgiu, e agora José? O que Drummond queria dizer com “a festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou?” o que acabou? Foi a vida? Mas que vida se não lhe dava sentido? Meurseault, na realidade acabou com as possibilidades de escolha, e assim foi além, esgotou a possibilidade de “poder-mais-ser”. Como José, do Estrangeiro lhe é retirado tudo, a parede para se encostar, o cavalo para fugir, a mulher, o discurso, o carinho, o cigarro, está sem rota para escolher, para onde Meurseault marcha? - Para aquilo que lhe carece e lhe falta e, o que lhe falta, lhe direciona à culpa. Culpa de quê? -De não ter mais aquilo que tinha. Culpa de não ter se apropriado de suas experiências. Culpa de sua impossibilidade em “ter” outras possibilidades. E o fato do “não-poder-mais-estar-aqui” e do fim do “poder-existir”, essa grande cólera, como diz Meurseault, o purificou do mal e o fez se sentir pronto para reviver tudo. Em seu último momento, recaem em Meurseault todos os sentimentos de culpa. Mas lhe recai o sentimento existencial de “ficar-a-dever”? Depois de muito pensar, acabou por reconhecer a importância de uma execução capital, assume seu estar - culpado mas não relativo a prestar contas a sociedade, como já disse, mas pelo desvelamento das coisas do mundo, daquilo que mais não lhe pertence devido a sua infelicidade de achar que não pôde mudar os rumos da vida, pela escolha de não fazer escolhas. E como castigo por sua indiferença do mundo, em suas últimas palavras, não se permite superar toda a opressão da angústia e da culpa e, num ato de auto flagelar-se, deseja que haja muitos espectadores no dia de sua execução e que o recebam com gritos de ódio, para que se sentisse menos só.
E AGORA JOSÉ? CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
E agora, José?
| E agora, você?
Com a chave na mão
| Se você gritasse,
se você morresse...
|
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